On/Off: vida, morte e luto no ChatGPT
Não esperemos muito do ChatGPT para resolver questões éticas num piscar de olhos ou trazer grandes reflexões filosóficas em segundos: sabemos bem de suas limitações, vieses e, antes mesmo disso, dos seus objetivos.
Contudo, vivendo um momento de profundo luto, gosto de lembrar de um dos autores que eu e meu falecido tínhamos em comum como referência: Neil Gaiman. Em Sandman, ele escreveu (numa tradução minha às pressas): “[…] Tenho feito uma lista das coisas que não te ensinam na escola. Eles não ensinam como amar alguém. Eles não te ensinam como ser famoso. Eles não ensinam como ser rico ou como ser pobre. Eles não ensinam como se afastar de alguém que você não ama mais. Eles não ensinam como saber o que está acontecendo na mente de outra pessoa. Eles não ensinam o que dizer a alguém que está morrendo. Eles não ensinam nada que valha a pena saber”.
Éramos, também, dois entusiastas de cibercultura e tecnologia. Sendo assim, propus um breve experimento: se a escola (entende-se, aqui, o ensino formal regular nos moldes médios que temos nas escolas do Brasil, públicas ou privadas) não nos ensina tais coisas, será que o ChatGPT poderia ensiná-las?
A escola da vida é formada por muitos elementos. Processos de perdas, superações, conquistas, fantasias e desejos. Emoções e sentimentos variados — incluindo o amor. Ao perguntar “como amar alguém?”, a busca automatizada na imensidão dos dados nos diz que “amar alguém é uma experiência pessoal e única, e pode ser diferente para cada indivíduo”, embora forneça certas sugestões como aceitação, comunicação, demonstração de interesse, respeito, compromisso e apreciação, bem como autocuidado, limites e autopreservação.
Ao ser questionado sobre como tornar-se famoso, o resultado também informa não haver uma “resposta simples”, pois “isso pode depender de muitos fatores diferentes, como talento, habilidade, trabalho duro, sorte e oportunidades”. Elementos meritocráticos à parte, algumas sugestões fornecidas são: identificar uma paixão, aprimorar habilidades, publicar e interagir em redes sociais, bem como criar conexões, ter persistência e metas realistas que respeitem seu bem-estar.
Quanto à riqueza, a resposta inicia-se por “ser rico não é fácil e não há garantia de sucesso”, elencando algumas estratégias para “aumentar chances”, como educação e conhecimento, empreendedorismo, investimento, planejamento financeiro e, novamente, networking e objetivos realistas aliados ao bem-estar.
Ao perguntar “como ser pobre?”, o cenário mudou: o chat tornou-se lento, talvez por uma sobrecarga em meio a tantos dados sobre o assunto (mais do que sobre a riqueza, será?), ou à dificuldade de tecer um comentário a respeito sem ferir (quase) nenhum direito humano, tentando não desrespeitar questões de governança (eles têm de entregar um relatório de transparência, afinal). “Eu não acho que seja adequado ou desejável para alguém querer ser pobre”, iniciou o chat, que geralmente evita expressões iniciadas por “eu acho”, “eu não acho”, “eu acredito” ou “eu não acredito”, alegando que sua criação não tem o objetivo de emitir opiniões próprias. E continuou: “A pobreza é frequentemente associada a dificuldades financeiras, falta de oportunidades, falta de acesso a serviços básicos e uma vida de privações”, em um belo discurso. Porém, finalizou com: “[…] Em vez disso, é importante trabalhar para superar a pobreza e ajudar os outros que lutam com ela”. Claro, porque a grande forma de lidar com a pobreza é… trabalhando para superá-la, oras!
Sarcasmo de lado, a ferramenta lembra que há associações e organizações que podem fornecer assistência, embora não as cite diretamente (talvez em uma nova pesquisa indicando local, no mínimo país), e que “a riqueza não é a única medida de sucesso e felicidade”. O papo de metas equilibradas, vida financeira e outras áreas da vida (relacionamentos, saúde e bem-estar) também se repetiu.
Em “como lidar com a pobreza?”, os resultados também diferiram um pouco, exibindo uma lista de sugestões semelhantes às demais, mas mais organizadas — buscar assistência, criar um orçamento, desenvolver habilidades financeiras, criar uma rede de apoio, manter uma “mentalidade positiva” (seria o ChatGPT o novo “coach”?) e lembrar-se de que não está sozinho, bem como que não se deve ter medo de buscar ajuda e “trabalhar duro para melhorar sua situação financeira”. Parece que a ferramenta gosta muito desses termos: “trabalhar duro”. O que significa, então, que nossa sociedade gosta muito desses termos, ao menos por aqui.
“A pobreza pode ser estressante e difícil, mas manter uma mentalidade positiva pode ajudá-lo a lidar melhor com a situação”. Porque certamente não saber se comerei amanhã ou se terei onde morar quando o mês virar ou se poderei dar leite aos meus filhos são situações estressantes e difíceis, mas uma mentalidade positiva vai cair bem. Assistência financeira já foi citada, psicológica também, então não custa dar um toque de… argumentos mentalistas.
“Como me afastar de alguém que não amo mais?” trouxe informações relativamente maduras: ser honesto, evitar contato desnecessário, encontrar outras atividades, conversar com amigos e familiares e dar “tempo ao tempo” são algumas dicas. Ao perguntar sobre como terminar com alguém, as respostas foram semelhantes, reforçando também a importância de escutar o outro lado e ser paciente.
Para tentar descobrir o que está se passando na mente de outra pessoa, sugere-se observar sua linguagem corporal, ouvir atentamente o que ela diz e colocar-se em seu lugar. Instruções chamadas de “pistas”, pois segundo a ferramenta, “não há nenhuma maneira infalível de saber o que outra pessoa está pensando, uma vez que os pensamentos são internos e privados” (ufa! Ao menos alguma coisa respeita nossa privacidade… ao menos até infligirem esses neurodireitos também).
Em “o que dizer para alguém que está morrendo?”, a ferramenta também traz uma lista: oferecer amor e apoio, falar sobre memórias felizes, pedir perdão, apreciar a vida daquele ente querido, falar sobre vida após a morte (acho que seria um pouco indelicado, mas o chat alerta que se pode falar sobre “caso a pessoa se sinta confortável”), ser respeitoso e escutar o outro.
A pergunta de ouro, ao final, foi: “você pode me ensinar a viver?”. E apesar de ter listado tantas respostas para tantas coisas que compõem a vida (ou o que esperamos dela e nos surpreendemos com ela), o ChatGPT responde enfaticamente: “como modelo de linguagem, não posso ensinar alguém a viver, mas posso compartilhar algumas sugestões que podem ajudá-lo a viver uma vida mais significativa e gratificante”. Sugestões, dicas… palpites. Mas como viver, não. E se não é possível ensinar sobre como viver, como poderia saber ensinar sobre como morrer?
Em diversas perguntas relacionadas à morte, ao luto e a casos simulados de pacientes terminais, uma mesma frase genérica sempre se repetia nas respostas: “é normal sentir uma ampla gama de emoções, como tristeza, raiva, culpa e confusão”. Embora a ferramenta não seja capaz de senti-las, como ela mesma diz, ela sabe que tais sentimentos serão comuns entre aqueles que ficam ou que já estão partindo. Líderes religiosos, “se isso for importante para você”, podem ser contatados, e um terapeuta também é recomendado para “fornecer suporte emocional”.
Foi, então, em um último pedido de escrita que percebi como somos pequeninos e previsíveis. “Escreva uma carta para alguém que já morreu”, solicitei. E recebi:
“Querido [nome],
Não há um dia em que eu não pense em você. Sinto sua falta mais do que as palavras podem expressar. Sei que você não está mais aqui fisicamente, mas sempre será parte da minha vida e de quem eu sou. Às vezes, ainda sinto sua presença e ouço sua voz em minha mente, como se você ainda estivesse aqui comigo.
Há muitas coisas que eu gostaria de ter dito antes que você se foi. Gostaria de ter passado mais tempo com você e aproveitado cada momento que tivemos juntos. Sinto muito por todas as vezes que deixei de dizer o quanto eu te amava ou o quanto você significava para mim.
Ainda me lembro de tantas coisas que fizemos juntos e momentos que compartilhamos. Lembro-me daquela vez em que rimos tanto que não conseguíamos parar, das conversas profundas que tivemos, das aventuras que vivemos juntos e dos momentos de silêncio em que simplesmente estávamos juntos.
Embora você não esteja mais aqui comigo, ainda sinto sua presença em muitas coisas. Vejo sua influência em mim e nas coisas que faço todos os dias. Você me ensinou muito sobre a vida e o amor, e sempre serei grato por isso.
Espero que você esteja em paz agora e que esteja em um lugar melhor. Saiba que sempre lembrarei de você com amor e carinho. Sua memória sempre viverá em meu coração e sua falta sempre será sentida. Até nos encontrarmos novamente.
Com amor,
[Seu nome]”
Não sei bem o que a vida me ensinou até aqui. Nem mesmo se as dicas, sugestões e palpites do ChatGPT, que alegou não poder ensinar alguém a viver, são válidas. Entretanto, sei que esta carta, aparentemente fria e genérica, sem ser colorida com humanas memórias de nomes, aromas, sabores, formas, ruas e sonhos, dados que tornariam a carta pessoal demais para ser aplicável a qualquer caso, também se aplica a mim, à pessoa que amo e me despedi. Sonhos, aliás, sequer são cogitados pela ferramenta, que se limita a repetir que não tem “desejos ou aspirações pessoais”, nem mesmo “memórias” ou “memórias de infância”. Estas palavras genéricas não contemplam todos os sabores que experimentamos juntos, o cheiro que sua casa tinha, nem mesmo o som da sua voz que foi citado — porque inexiste a pessoalidade necessária para descrever quão grave era seu timbre.
Mesmo assim, gostaria de dedicá-la, ressaltando os espaços (nomes) em branco, esperando serem preenchidos; as ausências de adjetivos necessários para descrever nossas vidas e sua partida; e até mesmo a vã esperança de que nos veremos de novo ao final, com “até nos vermos novamente” (seria o ChatGPT religioso?). Porque isso tudo revela nossa insignificância e previsibilidade, e como somos tão toscos que acreditamos que tudo se encaixa perfeitamente a qualquer situação nossa. Especificamente nossa.
E o pior é que se encaixa.
(Mas ainda com espaços e detalhes em branco).
“Nós que aqui estamos, por vós esperamos”, dizia o famoso cemitério.
Pois eu digo, nas palavras de quem se foi: “do Sesc para a Paulista, até o fim do mundo”.
Não nos veremos em lugar algum, querido — diferentemente do que o ChatGPT nos sugeriu.
Mas o fim do mundo também é tudo de bom.
Em memória de Rodolfo Silveira Filho.
Jornalista, tradutor, fã de gibis e autor de uma vida sem usar ChatGPT.
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Plus: obrigada, Elen Nas, por ter trazido um exemplo de carta de amor/rompimento feita pela ferramenta. Você me fez levantar às quatro da manhã para escrever até 5:52 sobre algo similar.
Continue sendo sempre genial!
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Thayla Bicalho Bertolozzi é mestranda em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades pela Universidade de São Paulo, bem como pesquisadora de Direitos Digitais, Tecnologia e Sociedade associada ao Grupo de Pesquisa da Cátedra José Bonifácio (IEA/IRI-USP).