O “Apagão da Twitch” e a exploração da diversão
Texto originalmente escrito e publicado no dia 19 de agosto de 2021, disponível em https://bit.ly/3zgaEs4
Thayla Bicalho Bertolozzi
Em 27 de julho de 2021, a Twitch, plataforma de streaming pertencente à Amazon e voltada, sobretudo, para transmissão de partidas de jogos eletrônicos e de e-sports, reduziu o valor das inscrições (subscriptions) em seus canais, no Brasil, de R$22,99 para R$7,90.
As inscrições são, assim como de modo muito semelhante à mecânica do Youtube, um dos meios pelos quais streamers (ou transmissores e produtores de conteúdo) conseguem ser apoiadas(os) e, consequentemente, receber valores monetários para manter suas atividades. Cada inscrição sinaliza uma possível fidelização do usuário àquele canal, podendo este adquirir benefícios especiais em jogos e na própria plataforma a partir dessa interação.
Desde a divulgação da decisão, muitos streamers mostraram-se inquietos com a possibilidade de receberem ainda menos durante suas transmissões. Tanto que, concomitantemente ao anúncio, também foi divulgada, em uma entrevista exclusiva, uma fala do vice-presidente de monetização, Mike Minton, indicando que os streamers não ganhariam menos por conta dessa decisão, e que um programa de proteção de renda seria implementado para garantir que suas receitas não diminuam nos doze meses após as mudanças.
Com o referido programa, nos três primeiros meses, a Twitch cobriria 100% dos valores da linha de base já adquiridos pelos streamers anteriormente. Do 4º ao 6º mês, os valores seriam correspondentes a 75% da linha de base. Do 7º ao 9º mês, 50%, e do 10º ao 12º mês, 25%.
A mudança também não ocorrerá apenas no Brasil. Estes são alguns dos primeiros passos para alterações de preços na plataforma ao redor do mundo. Preços de inscrição na Europa já sofreram alterações, assim como dias depois da decisão correspondente ao Brasil e aos demais países da América Latina, mudanças semelhantes foram aplicadas a países do Oriente Médio e África.
Na página do blog da própria Twitch, a plataforma disponibilizou uma atualização informando que após as alterações na Turquia e no México, o apoio da comunidade foi muito positivo — com valores menores de inscrição, os canais teriam recebido mais inscritos do que antes, formando comunidades maiores e, em tese, talvez até mais rentáveis para os streamers do que anteriormente.
E por que, então, se a decisão foi tão benéfica no México e na Turquia, alguns streamers brasileiros continuam protestando contra a mudança?
Primeiramente, muitos ainda desconhecem o programa de proteção à renda e os critérios de elegibilidade do mesmo, o que já evoca a necessidade de uma maior divulgação, por parte da plataforma, sobre essa possibilidade, além da importância de manter a respectiva página de informações e critérios sempre ativa e acessível. Mesmo com a decisão já em vigor desde o final de julho de 2020, muitos streamers ainda se sentem desprotegidos justamente por não conhecerem o programa. Além disso, algumas das informações disponíveis na página ainda não foram traduzidas ao português, ou seja, podem ser inacessíveis para uma parcela do público-alvo.
Ou seja: enquanto o programa ainda não é amplamente divulgado, nem mesmo seus critérios de elegibilidade são mais facilmente compreensíveis, streamers, principalmente com canais de pequeno e médio porte, sentem-se indignadas(os) com o descaso por parte da plataforma, e começam a se mobilizar em prol de um “apagão” de serviços previsto para o dia 23 de agosto de 2021, quando pretendem deixar de transmitir conteúdo, em greve, como forma de manifestação.
Além disso, na página do blog da Twitch, a explicação oficial se utiliza de uma tabela com o percentual de redução em países da região Ásia-Pacífico, em que é possível observar que países como Austrália terão apenas 11% de redução, enquanto países como Singapura terão 36%, e Tailândia 57% (o índice mais alto da região). No Brasil, o percentual foi de 66%.
A justificativa utilizada seria de que usuárias(os) de países mais periféricos teriam reclamado sobre os altos valores de inscrição em canais de streamers, dificultando sua interação e seu apoio ao canal, enquanto que em países mais desenvolvidos, a situação socioeconômica local não seria uma grande barreira de acesso. Por isso mesmo, o programa de proteção à renda é destinado apenas a streamers em países que não sejam EUA, Canadá, Japão, Israel, Suíça e territórios periféricos sem alteração de preços.
Por outro lado, é possível se indagar: ainda sem um programa de proteção à renda realmente difundido entre a comunidade, é impossível ler essa iniciativa sem se utilizar de uma ótica extremamente crítica e criteriosa. Afinal, enquanto não houver um programa de proteção realmente conhecido, e enquanto seus critérios de elegibilidade não forem claros para quem produz, de fato, conteúdo, estaremos falando apenas de facilitar a inclusão de usuários em inscrições, mas dificultar o recebimento por parte dos streamers com valores menores, e sobretudo em países periféricos com percentual de redução ainda maior.
Se, de fato, o programa de proteção for mais difundido, e mais usuárias(os) se inscreverem nos canais devido à redução de preço, até é possível pensar que essa foi uma iniciativa bem planejada e executada. Contudo, enquanto a iniciativa não for bem difundida e acessível, streamers de canais menores continuarão indignados e buscando reivindicar seus direitos, sobretudo contra a exploração da transmissão de conteúdo, do jogo, do campeonato profissional, do lúdico e, enfim, da diversão.
Portanto, caberá à Twitch e à Amazon, internamente, não apenas cumprir com seu Modern Slavery Statement (Declaração de Escravidão Moderna), mas também, externamente, junto a usuários e streamers, com suas políticas e seu progama de proteção, inclusive tornando-os mais acessíveis.
EDIT 01/09/2021:
No dia 23/08/21, contribuí com o Podcasy PodPlay, da Games for Change Latin America, sobre o tema. Nele, também falei sobre como casos de discriminação e desinformação na plataforma poderiam contribuir para outras greves e complicações, e como banir não é suficiente, assim como identifiquei novas ações da Twitch para tentar resolver a questão. Nem todos os tópicos foram incluídos no mesmo episódio disponível aqui, mas a entrevista completa, abordando esses temas que são frutos de minha pesquisa de mestrado, pode ser conferida aqui.
Neles, falei exatamente sobre o que veio a acontecer depois — hoje, 01/09/21, em uma nova greve contra assédio e discriminação no site, entre usuários, streamers e jogadores.
Isso só reforça quão atentos precisamos estar! Não é premonição, nem alarde: é fruto de muita pesquisa, dedicação e preocupação com a pauta. Infelizmente, contudo, poucos veículos têm noticiado o tema como poderiam e deveriam — afinal de contas, argumento, em minha dissertação, como esses temas têm ligação intrínseca com as eleições presidenciais e com a política em si.
Thayla Bicalho Bertolozzi é mestranda em humanidades, direitos e outras legitimidades pela USP (Universidade de São Paulo), graduada em relações internacionais pela mesma instituição e pesquisadora assistente no Afro-Cebrap (Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial). Atualmente, investiga casos de discriminação e desinformação em canais de jogos da Twitch durante períodos eleitorais.